Tema que exige atenção dos compradores de imóveis e que traz preocupação quanto à forma pela qual o STJ produz e aplica seus precedentes.
Decisão do STJ cria obrigação não prevista em lei e gera absoluta insegurança nas operações de compra e venda de imóveis. O tribunal está a exigir que os compradores procurem verificar a regularidade fiscal de todos os proprietários anteriores do imóvel que estejam adquirindo e não apenas daquele que lhe está vendendo o bem. Nos termos do entendimento do STJ, o comprador poderá ser uma vítima de fraude e, apesar de ser vítima, ainda poderá vir a perder o imóvel que adquiriu.
O Código Tributário Nacional, em seu art. 185 (com redação conferida pela LC 118/05), estabelece que ocorre a fraude à execução tributária quando alguém que esteja inscrito em dívida ativa aliena seus bens, sem reservar outros suficientes ao pagamento desta dívida.
Antes da redação conferida pela LC 118/2005, apenas se já ocorrida a citação do executado/alienante, a venda seria considerada fraudulenta.
Assim, pela lei vigente desde junho de 2005, se o alienante está inscrito em dívida ativa e não reserva outros bens, a alienação por ele realizada é considerada fraudulenta.
O efeito dessa fraude é justamente tornar ineficaz essa venda perante a Fazenda Pública credora, ou seja, o bem alienado, ainda que esteja na propriedade de outra pessoa, poderá ser penhorado para pagar o crédito fazendário devido pelo alienante.
Trata-se de importante regra que busca fazer prevalecer o interesse público existente na cobrança dos créditos fazendários.
No ano de 2010, o STJ produziu precedente obrigatório (o Tema 290, REsp 1.141.990/PR, julgado em 10.11.2010) afirmando que a presunção de fraude que emana do art. 185 do CTN é absoluta, não cabendo prova em contrário, nem alegação de boa-fé do terceiro adquirente do bem.
Assim, é fundamental que as pessoas que comprem imóveis, tenham a cautela de pesquisar a existência de dívidas não só relativas ao bem que estejam comprando (IPTU e taxas que recaiam sobre um imóvel, por exemplo), mas, também, deve-se pesquisar sobre e existência de débitos em nome da pessoa que está vendendo o bem.
Entretanto, essas cautelas não são suficientes.
O STJ, por volta de 2013, passou a entender que essa presunção absoluta de fraude também se aplica nos casos de alienações sucessivas, quando o último adquirente compra o bem de alguém que não está inscrito na dívida ativa, mas algum proprietário anterior a este estava, de modo que a presunção absoluta de fraude se aplica a todas as operações futuras que eventualmente sejam realizadas.
A primeira vez que o STJ, já na atual redação do art. 185 do CTN e já existindo o Tema 290, decidiu aplicar a presunção absoluta de fraude também para os casos de alienações sucessiva, foi no julgamento do AREsp 135.539/SP, onde a 2ª Turma, por maioria de votos (vencido o Min. Herman Benjamin que entendia ser necessária a integração à lide do atual proprietário do bem para que a declaração da fraude pudesse lhe ser aplicada) decidiu que a presunção absoluta existiria também nos casos de alienações sucessivas. A partir daí, esse entendimento passou a ser replicado, sem maiores considerações.
Ocorre que, para ampliar a aplicação do Tema 290 para as alienações sucessivas, o STJ fundamentou sua decisão afirmando que assim já havia sido antes decidido e citou o julgado proferido no AgRg no REsp 1.072.644/SC e aí está a grande questão que parece não ter sido percebida pelos julgadores. O julgado proferido no AgRg no REsp 1.072.644/SC tratava de fraude à execução praticada à época da redação anterior do art. 185 do CTN – que exigia a citação do alienante – e, ainda, no caso concreto, havia registro de penhora ocorrido em julho/2002 e a alienação do bem ocorreu em fevereiro/2004. De fato, havendo registro de penhora, os posteriores adquirentes não podem alegar desconhecimento da existência de débitos, pois esses se encontram registrados na matrícula do bem.
Percebe-se, assim, que houve uma ampliação do Tema 290, valendo-se de fundamentação retirada de outro quadro fático e jurídico.
Recentemente, no último mês de agosto, caso emblemático foi julgado pela 1ª Turma do STJ e demonstra a completa insegurança jurídica que se apresenta para os adquirentes de imóveis.
Tratou-se de uma aquisição realizada em janeiro/2008, pelos “Adquirentes A” que compraram o imóvel do “Alienante B”.
O “Alienante B” não tinha seu nome inscrito na dívida ativa, nem era réu em processo de execução fiscal. Do mesmo modo, não havia qualquer registro de penhora sobre o bem adquirido. Assim, após os adquirentes verificarem a regularidade do alienante e do imóvel, a compra foi realizada.
Ocorre que, mais de um ano depois da aquisição, em março/2009, juiz da vara de fazenda pública de São Paulo declarou a ocorrência de fraude na venda anterior que foi feita para o “Alienante B”. Descobriu-se, então, que, anteriormente, o imóvel pertencia a uma pessoa jurídica que, ela sim, estava inscrita em dívida ativa e que o “Alienante B” era filho de um de seus sócios.
Houve, então, a venda do imóvel da pessoa jurídica para o filho de um dos sócios, com o objetivo de colocar o bem em nome de uma pessoa que não possuía pendências em seu nome e, assim, ser possível realizar uma venda posterior na qual o futuro comprador, ao pesquisar débitos em nome do alienante não identificasse qualquer irregularidade.
Tratou-se de um artifício para ludibriar os compradores seguintes que, ao realizarem as pesquisas que ordinariamente são realizadas quando da compra de imóveis, não identificariam a existência de débitos ou restrições referentes ao imóvel ou ao alienante que estava realizando a venda. Registre-se que não existe lei exigindo que o comprador do imóvel verifique a regularidade fiscal dos proprietários anteriores àquele que lhe está vendendo o bem.
O juiz da vara de fazenda pública de São Paulo, apesar de declarar fraudulenta a venda realizada para o filho de um dos sócios da pessoa jurídica, posteriormente, em sede de embargos de terceiros, afastou os efeitos dessa fraude para os “Adquirentes A”, ao fundamento de que eles não tomaram parte, nem tiveram conhecimento da fraude ocorrida na operação anterior e que havendo alienações sucessivas não seria possível imputar uma presunção absoluta de fraude para os adquirentes posteriores.
Nada obstante, em sede de apelação, o TJSP reformou a sentença dos embargos de terceiro, afirmando que a presunção absoluta de fraude aplicar-se-ia, inclusive, para os adquirentes posteriores que tivessem comprado o bem de alguém que não estava inscrito na dívida ativa.
Em julgamento ocorrido em agosto último, a 1ª Turma do STJ, proferindo decisão de mérito, negou provimento ao recurso especial dos “Adquirentes A”, afirmando que a presunção absoluta de fraude se aplica a todos os adquirentes posteriores, ainda que eles não tenham tido ciência da fraude e dela não tenham participado.
Em suma, os adquirentes foram vítimas de uma fraude perpetrada na operação anterior, fraude que teve por objetivo dar uma aparência de legalidade para os compradores seguintes e, apesar de vítimas, irão perder o imóvel que adquiriram há 15 anos, quando o STJ nem mesmo ainda havia produzido o precedente obrigatório do Tema 290.
A nível de tribunais de apelação, em especial no TRF 4ª Região (mas também há decisões do TRF 1ª, 3ª e 5ª Regiões), existem diversos julgados que alertam para a absoluta falta de segurança jurídica que esse entendimento do STJ gera para as relações jurídicas de compra de imóveis e afastam a aplicação do Tema 290 para as alienações sucessivas, entretanto, o STJ continua aplicando esse entendimento, sem maiores considerações.
Ao que parece, a realização de um ampliative distinguishing baseado em situação que envolvia outro quadro fático e outro quadro jurídico ocasionou um erro em cadeia na jurisprudência do STJ.
É certo que excluir a possibilidade de fraude à execução nas alienações sucessivas não seria uma medida correta e abriria caminho para graves danos à fazenda pública, o que não se pode admitir. Entretanto, a questão que deve ser reavaliada é aplicar uma presunção absoluta de fraude para os adquirentes posteriores. Talvez, o mais adequado seria estabelecer que os efeitos da fraude perante os adquirentes posteriores fossem avaliados no caso concreto, aferindo eventual participação ou conhecimento dos últimos adquirentes em relação à fraude praticada em operação anterior.
Por fim, cabe pontuar que existem julgados da própria 1ª Turma do STJ, com relatoria da Ministra Regina Helena Costa, decidindo sobre o não conhecimento de recursos da Fazenda Nacional, ao fundamento de que o art. 185 do CTN não se aplicaria para os casos de alienações sucessivas.
No julgamento ocorrido em agosto último, a 1ª Turma foi provocada a se manifestar sobre a existência desses precedentes e respondeu afirmando que eles decidiram sobre o conhecimento dos recursos da Fazenda Nacional, não cabendo essa interpretação quando se esteja decidindo sobre o mérito de um recurso.
Ou seja, o STJ entende que um mesmo dispositivo de lei pode ter duas interpretações díspares. Uma para julgamento onde se delibere sobre o conhecimento de recurso e, outra, diametralmente oposta, para quando se esteja decidindo sobre o mérito de um recurso, ainda que os quadros fáticos sejam exatamente os mesmos.
Rafael Santos de Barros e Silva